INJUSTIÇA? Métodos usados contra o irmão Kalupeteka podem ter sido usados contra acusados de rapto

SIC SUBMETE CIDADÃO A TORTURA SÁDICA E BRUTAL

5 de Dezembro de 2017 / Rafael Marques de Morais

Foi a luta pelo poder na Igreja Adventista do Sétimo Dia que levou o seu (ex-)presidente da região norte, pastor Daniel Cem, a alegadamente simular o seu próprio rapto, no dia 29 de Outubro de 2015. Durante o “cativeiro”, usou o seu telemóvel e computador para negociar pessoalmente com a igreja o seu resgate, para conversar com amigos e familiares. A igreja não pagou. Para justificar a sua libertação, o pastor alegou que os próprios raptores lhe teriam concedido um empréstimo de dez milhões de kwanzas, conforme explicado anteriormente, na primeira parte desta investigação. Como a história não fazia sentido, era preciso encontrar alguém que confessasse o suposto crime.

João Alfredo Dala, foi pessoalmente torturado – até o deixarem mutilado – por alguns dos principais chefes do SIC, durante 15 horas seguidas, para o obrigarem a repetir, em vídeo, uma confissão que lhe tinham preparado. O pastor Daniel Cem e familiares seus também torturaram o “escolhido” na 48ª Esquadra Policial, em Viana.

Eis o que então se passou.

Assalto à casa de João Dala

A 4 de Dezembro do mesmo ano, por volta das 23h00, um grupo de 18 elementos encapuzados invadiu a residência do comerciante João Alfredo Dala, líder da juventude da igreja Adventista do Sétimo Dia, no bairro Rocha Pinto, tendo morto o seu cão pastor alemão com um tiro na cabeça.

“Pensámos que eram bandidos. Escalaram até ao primeiro andar onde vivo e entraram no meu quarto. Pedi-lhes que não fizessem mal à minha família. Disse-lhes que tinha dinheiro e que o entregaria”, afirma João Dala.

“Um deles pegou na minha filha de 20 anos, a Linda, e pensei que a fossem violar e comecei a gritar. Implorei para que não a violassem”, denuncia. Levou então uma coronhada na testa que o deixou a sangrar profusamente.

Na altura, João Dala e a esposa tinham um agregado familiar de nove pessoas, contando com filhos e netos.

Os assaltantes reuniram as nove pessoas no quarto de João Dala, amarraram-nas e obrigaram-nas a deitarem-se de barriga para baixo. As filhas Meury e Anita, respectivamente de quatro e sete anos, e a neta Darlene, de seis anos, também foram amarradas.

Nessa altura, a missão dos 18 encapuzados – comandada pelo especialista do Serviço de Investigação Criminal (SIC), Elifaz Simão Sebastião Germano, colocado no Departamento Provincial de Operações, e por Paulino Quizanga Andrade – retirou os capuzes. Só então a família percebeu que não se tratava de um assalto, mas de uma operação policial. Qual era a diferença?

“Os polícias tiraram a fralda do meu neto de um ano para o revistarem e verem se lá não tínhamos escondido dinheiro, como ele tinha feito cocó, os polícias atiraram-me a fralda à cara. Fiquei com as fezes na cara”, revela a vítima.

Acto contínuo, os agentes revistaram as mulheres, incluindo as crianças, obrigando-as a ficarem nuas. “A minha esposa até hoje está traumatizada, porque a obrigaram a ficar nua diante de todos os polícias. Puseram-na agachada para verem se não tinha escondido nada nas cavidades. O agente Quizanga disse que a família não devia levar a mal, porque estavam a usar um procedimento legal da polícia”, refere o esposo.

“Eu tinha três mulheres adultas em casa. Até as crianças foram despidas, e obrigadas a ficar agachadas, nuas, com as mãos na nuca. Para serem apalpadas nos sexos e depois voltaram a amarrá-las”, reitera.

João Alfredo Dala revela ainda que os agentes lhe ordenaram que entregasse todo o dinheiro que tinha em casa.

“Eu tinha um cofre improvisado por detrás do guarda-fato. Os homens retiraram 15 mil dólares, nove milhões de kwanzas, seis mil euros e dez mil renminbi (dinheiro chinês).

Como parte da operação, os agentes recolheram dez telefones móveis, Ipads, computadores, documentos das suas viaturas e de identificação da sua família, embrulharam tudo num cobertor e abandonaram a residência.

“Ali mesmo, diante de nós, os 18 dividiram o dinheiro entre si. Um deles ainda me perguntou qual era o câmbio do dinheiro chinês e onde poderia trocar. O outro só queria receber em dólares e em kwanzas”, denuncia o comerciante.

“Ameaçaram-me que, se eu mencionasse que tinham dividido o dinheiro entre si, regressariam para fuzilar a minha família. O Quizanga e um mulatinho faziam essas ameaças. O que um dizia o outro repetia”, acrescenta.

Por volta das duas da manhã, os assaltantes reclamaram que estavam com fome. “Desamarraram a minha filha de 20 anos, Linda Dala, mandaram-na fazer comida, enquanto todos nós continuávamos amarrados. Ela fez arroz com peixe, mas eles queriam funje.”

Também queriam beber, mas, por ser adventista, João Dala não tinha bebidas alcoólicas em casa. “Passaram a noite a beber gasosa, enquanto eu sangrava e tinha a família toda amarrada e deitada no chão, até as crianças. A bebé passou a noite a chorar no cadeirão, porque a mãe, a Linda, depois de fazer a comida foi novamente amarrada.” O Elifaz e o Quizanga acompanharam-na até à cozinha, onde, segundo a própria, se puseram a apalpá-la e a gabar-lhe o “rabo grande”.

Para espanto de João Dala, por volta das 4h00 chegaram à sua residência elementos fardados, comandados pelo chefe de Departamento de Combate ao Crime Organizado do SIC, superintendente-chefe Pedro Lufungula.

“Reconheci também o Noé, chefe de Buscas e Capturas do SIC no município de Cacuaco, que me tinha burlado em 40 mil dólares no início de 2015, quando me vendeu dois apartamentos do projecto do Sequele, que afinal tinha arrombado e forjado documentos”, denuncia João Dala.

“Quando percebi que era uma operação oficial do SIC e da Polícia Nacional, comecei a reclamar os meus direitos. Que os agentes tinham violado a lei ao fazerem buscas na minha casa àquela hora”, e lamenta a sua ingenuidade.

Foi nessa altura que soube da primeira justificação para a operação contra si. “Disseram-me que atropelei uma pessoa e, por isso, tinham de levar os meus dois carros, O Toyota Land Cruiser V8 e o Toyota Tundra.”

Tortura na Esquadra

João Dala sob tortura com catana (foto captada pelos próprios torturadores, na esquadra)

Levaram-no para a 48ª Esquadra, no bairro da Estalagem, junto à Escola 8, no município de Viana.

“Na esquadra, encontrei o superintendente Fernando Receado, chefe do Gabinete Central de Operações do SIC a nível nacional, e o Ngola Kina, director provincial adjunto do SIC em Luanda, bem como outros chefes”, diz.

Mais uma vez, a presença desses chefes deu alento ao detido, que acreditou novamente que isso lhe permitiria exigir que respeitassem os seus direitos. Debalde. Os chefes estavam ali para torturá-lo pessoal e solidariamente em grupo.

João Dala apercebeu-se também da presença, na sala para onde o encaminharam, do pastor Daniel Cem, acompanhado pelo seu irmão Henriques Carlos Quissola (mais conhecido por Carlos Cem) e dois sobrinhos, nomeadamente o tenente-coronel Domingos Terça Massaqui Roberto Cem Pinto Leite. O tenente-coronel é o mesmo que apresentou a queixa denunciando o alegado rapto, 12 horas antes de o mesmo ter acontecido, e informou a polícia de que a viatura era um Toyota Tundra.

O detido contou nove viaturas Toyota Tundra, incluindo a sua, que a polícia tinha apreendido como parte da referida operação.

“O Receado, quando me viu, disse aos seus subordinados que ele tinha apenas ordenado a apreensão de um das viaturas (Tundra) e que não tinha ordenado a minha captura. Aproveitei para reclamar que os seus agentes tinham levado o meu dinheiro todo e exigi a devolução dos meus bens”, explica.

“O agente Quizanga atingiu-me com o cabo da pistola na cabeça. A seguir, o agente Elifaz deu-me com uma catanada que me abriu a cabeça, na presença do chefe do gabinete de Operações do SIC, o superintendente Fernando Receado, por ter reclamado o dinheiro que eles dividiram em casa”, conta.

Foi então que soube da segunda justificação para a sua captura: a alegada participação, com a viatura, no suposto rapto do pastor Daniel Cem.

“O pastor disse que eu era seu irmão e nada tinha a ver com o caso. Mas, ao revistarem o carro, encontraram cópia de uma carta anónima, com a qual ele tinha sido confrontado na reunião da igreja, a desmascarar o rapto como uma simulação sua e da sua família.”

Carlos Cem, irmão do pastor, deu início às hostilidades, tendo esmurrado João Alfredo Dala ao ponto de lhe arrancar um dente, conforme depoimento deste. “O Carlos Cem disse-me que é poderoso em Luanda e controla a polícia.” João Francisco Dala caiu no chão com o vigor dos socos. Foi então a vez de o pastor Daniel Cem, diante dos chefes do SIC, prosseguir com a pancadaria, pontapeando o detido na cara repetidas vezes, como este denuncia.

João Dala garante que o pastor e o irmão prometeram oferecer-lhe um apartamento no Kilamba, 50 milhões de kwanzas e dois a três meses de prisão efectiva, caso denunciasse, em vídeo, os pastores Teixeira Vinte, Adão Hebo (administrador financeiro da região norte da Igreja), assim como os irmãos João Sonhi e Garcia José Dala, como co-autores do suposto rapto. “Eu nem sequer conhecia os últimos dois.” Caso contrário, prometeram-lhe que “seria a tortura até à morte”.

Tanto o pastor Daniel Cem como o tenente-coronel Domingos Terça Massaqui declinaram apresentar a sua versão dos factos ao Maka Angola, como já mencionado no texto anterior.

João Dala recusou-se a gravar “tal mentira”.

A tortura do pénis

“O pastor Cem ordenou ao superintendente Fernando Receado que me amarrassem no formato de tortura do avião “Kadiembe”. Mas o chefe de operações do SIC optou antes pela tortura do pénis.

Segundo o detido, “o Pinto Leite retirou os atadores dos seus ténis Converse, amarrou os atacadores um ao outro, para o fio ficar comprido. O chefe Fernando Receado foi quem pessoalmente amarrou o fio no meu pénis e foi o primeiro a começar a puxar e a correr comigo à volta da sala, enquanto o pastor Daniel Cem e o irmão diziam que eu falaria rápido e todos se riam”.

Os chefes da investigação e os acusadores revezaram-se então, solidariamente, a torturar o detido. “Depois do chefe Receado, foi o Carlos Cem a pegar no atacador amarrado ao meu pénis e a começar correr comigo pela sala, a puxar. A seguir foi o Noé (SIC, Cacuaco)”.

Todavia, “o pastor reclamou que não me estavam a puxar bem, e recebeu o atacador e começou a correr na sala a puxar-me com muita violência. Eu estava a sentir a bexiga como se estivesse a cortar. O tenente-coronel Terça Massaqui pegou na corda e começou a puxar com extrema violência e perguntar-me se doía. Ele já não correu”.

A seguir foi o superintendente-chefe Pedro Lufungula a puxar o pénis do detido pela corda. “Então, pediram ao Pinto Leite para ir buscar um bloco de cimento que estava na porta. Amarraram o atador ao bloco de cimento e obrigaram-me a correr na sala, com o bloco amarrado ao pénis. Eu já não aguentava. Não conseguia sequer dar um passo. Então batiam com força nas orelhas, por detrás, e eu caía e rebolava com bloco”, afirma.

“Nessa altura, eu, que tenho 1,75 cm, tinha o meu pénis já esticado até ao joelho”, acrescenta, mostrando-nos as fotos chocantes, sobre as quais falaremos mais adiante.

“Foi então que vi o próprio Ngola Kina a chorar e a pedir ao superintendente Fernando Receado, o chefe do Gabinete de Operações do SIC, para que me desamarrassem os atacadores e parassem com a tortura do pénis, porque eu poderia morrer”, explica.

Já eram sete horas. O pastor saiu com os seus acompanhantes, disse que iria pregar nesse dia e deixou ordens para que a tortura continuasse até haver uma confissão em vídeo, envolvendo os outros pastores. “Referiu que eu bem poderia morrer, ele assumiria”, diz.

A tortura da catana

“Então, o Ngola Kina propôs um outro método de tortura. Puseram-me um pedaço de cobertor preto, que usavam como pano de chão, nas costas. Despejaram-me água fresca e começaram a torturar-me com o lado da catana”, denuncia.

João Alfredo Dala refere que todos os presentes se revezaram a espancá-lo com a catana, excepto o proponente Ngola Kina. “O superintendente Fernando Receado foi o que mais me espancou, o Noé a seguir”, afirma.

Como o torturado não confessava, os seus algozes retiraram-lhe o pano de cima e passaram a bater-lhe directamente sobre a pele com a catana e porretes. Fotos tiradas pelos próprios agentes mostram o estado chocante em que lhe deixaram as costas.

“Deixei de sentir dores. Batiam até ficar cansados. Até o escrivão saiu do computador e veio espancar-me também. O Ngola Kina saiu da sala. O Receado saiu a seguir.”

A tortura do “avião”

“O Noé ordenou então aos seus homens para que me aplicassem a tortura do avião. Passaram-me primeiro fita-cola nos braços, e depois amarraram-me, para não deixar marcas”, explica.

A tortura do avião consiste em amarrar os braços da vítima pelos cotovelos e juntá-los aos tornozelos, pelas costas. Puxa-se então a corda, para vergar o corpo numa bola com a nuca a ser pressionada de encontro aos calcanhares da vítima.

Para estancar o sangramento, os agentes despejavam álcool puro nas feridas da vítima, de acordo com o seu depoimento.

A tortura prosseguiu até as 19h00.

Nessa altura, a vítima já se manifestava disponível a denunciar até Jesus Cristo, se os torturadores assim o entendessem. “Queriam que eu assumisse o rapto e que eu tinha recebido o dinheiro. Eu já não sentia dores nem forças no corpo e não conseguia repetir o que me diziam para gravar. Falava desalinhadamente.”

A tortura do afogamento simulado

Para garantir total cooperação, o superintendente-chefe Pedro Lufungula, que assina sempre os documentos como doutor, tinha mais um método de tortura na manga: o afogamento simulado.

“Mandou trazer um balde de água. Punham-me um pano na boca, abriam-na e despejam água, para me obrigarem a dizer o que eles queriam”, conta João Alfredo Dala.

Nessa altura veio o maquilhador, que tornou o torturado apresentável para o vídeo. Conta o deponente que um dos agentes lhe puxava as unhas dos dedos grandes dos pés, com alicate, para o “estimular” a repetir de forma satisfatória a confissão que os chefes do SIC lhe ditavam. Depois de oito repetições, o chefe do Departamento do Crime Organizado, superintendente-chefe Pedro Lufungula, deu-se por satisfeito com o resultado da gravação, mas prosseguiu com a tortura da água.

João Dala sob tortura, a unha sendo arrancada com alicate (foto captada pelos próprios torturadores, na esquadra)

Só às 20h00, com a chegada de Garcia José Dala (sem laço de parentesco), deixaram de o torturar. Quando confrontados um com o outro (não se conheciam) levaram ambos bofetadas e foram depois separados. João Garcia Dala foi torturado apenas por meia hora, graças à intervenção de um tio seu general-governante, que destacou uma força especial para saber o que se passava.

O cárcere privado

Quando essa força especial chegou ao local, o superintendente-chefe Pedro Lufungula, chefe do Departamento de Combate ao Crime Organizado do SIC, ordenou a transferência de João Francisco Dala para um cárcere privado.

“Foram esconder-me numa casa particular, ao lado da esquadra. Contei até 190, a partir do momento em que saímos de carro e chegámos ao destino. A dona de casa parecia ser agente da Polícia Nacional. Tinha farda no quarto onde eu fiquei.”

“Durante quatro dias cuidou de mim, com quatro agentes da Polícia Nacional de plantão, a vigiarem-me por turnos durante esse tempo”, salienta.

Passados quatro dias, os oficiais do SIC foram recolhê-lo e levaram-no para o Hospital Militar Central de Luanda, que se recusou a tratar o paciente “por causa do mau hábito do SIC em torturar” e depois levar as vítimas a esse hospital. Com a mesma justificação, o Hospital-Prisão do São Paulo também rejeitou o paciente.

“O chefe Fernando Receado, do Gabinete Central de Operações do SIC, ordenou que me colocassem assim, na cela do SIC, onde passei 17 dias sem ver ninguém”, lamenta.

Foi interrogado, a posteriori, pela procuradora junto do SIC Mommy Davoca, que legalizou a detenção. O detido foi encaminhado à Comarca Central de Luanda, tendo cumprido dois meses de prisão preventiva.

“Quando a dra. Mommy me ouviu e lhe falei da tortura, ela começou a chorar e disse-me que lhe entregaram o vídeo com a minha confissão. A procuradora mandou-me despir, fiquei todo nu, e ela pegou no telemóvel dela e tirou-me várias fotografias que mostravam o estado em que eu me encontrava, mas não colocou isso no processo”, revela.

A 21 de Novembro de 2016, em acareação presenciada pelo co-torturador, o superintendente Fernando Receado, chefe do Gabinete Central de Operações do SIC, o pastor Daniel Cem “volta a dizer com toda a certeza que o senhor João Alfredo Dala é um dos autores do rapto de que ele acareado foi vítima”.

Continua.

Fonte: https://www.makaangola.org/2017/12/sic-submete-cidadao-a-tortura-sadica-e-brutal/

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